Quando fiquei mais velho, eu ficava tão bravo quando mamãe tirava fotos, porque ela era louca para tirá-las, e agora é o oposto. É como ‘Droga, eu queria ter uma foto disso’, então são todos aqueles sentimentos nostálgicos de valorizar esses momentos e ser grato, além das fotos. […] quando você está longe, você aprecia mais as coisas e as entende melhor.
— Bad Bunny, em entrevista à revista Rolling Stone
quando você mora longe de sua terra natal e volta pra lá duas vezes por ano no máximo, além das novidades envolvendo seus primos de segundo grau que já estão se casando e tendo seus filhos, as conversas em família giram em torno de memórias. “nossa, matheus, como tu cresceu”; “eu lembro de tu bem pequenininho”; “espera, eu vou pegar aqui umas fotos pra te mostrar, aí tu me diz se tu se lembra”.
eu só cheguei a descobrir essa e outras fotos minhas ano passado, e é engraçado pensar que, muito provavelmente, tem mais fotos minhas por aí que eu ainda não vi. talvez eu nunca veja algumas delas.
em tempos anteriores à câmera com cartão de memória, cada um revelava as suas fotografias e elas ficavam em algum canto da casa. quer ver essas fotos? vá na casa da pessoa que fotografou e peça, com sorte ela se lembra de onde guardou. eu nasci nesses tempos, mas poucas são as lembranças. como assim eu tive um aniversário temático do batman?
minhas lembranças começam a ganhar nitidez em tempos mais digitais. tempos em que fotos ainda não eram coisas sobre as quais eu tinha controle, mas já era mais fácil ter acesso a elas. bastava que o fotógrafo passasse as fotos da câmera pro computador com algum cabo mágico e jogasse essas fotos em alguma rede social, e pronto, todo mundo podia ver. e todo mundo via. pela primeira vez na história alguém falou “deleta essa foto e posta outra porque eu tou feio nessa”. já eram tempos não muito distantes dos nossos.
não muito tempo depois, nossos celulares viraram nossas câmeras. na verdade, os celulares já tinham câmeras há algum tempo, mas as fotos ainda eram horríveis. enfim, eu finalmente tinha uma câmera em mãos, e fotos viraram coisas sobre as quais eu tinha controle, mas havia um problema: eu odiava fotos.
“por que você odiava fotos, matto?” não sei. tem gente que não suporta o gosto de açaí e é isso. acho que, pra mim, não gostar de tirar fotos era bem parecido com não gostar de açaí. eu não consigo de verdade achar uma explicação. talvez seja sobre não querer registros de uma época em que eu não tava muito bem da cabeça, mas não sei. ou talvez tenha a ver com eu não curtir muito minha aparência na época, mas não sei também. talvez eu devesse levar esse tópico pra analista.
fato é que nenhum dos registros fotográficos meus até o fim de 2019 eram, de fato, meus, porque eu não registrava nada sobre mim. acontecia de eu aparecer nas fotos de amigos ou familiares, mas aqueles momentos não eram meus. em diversas ocasiões, conversando com amigos, surge o tópico “ensino médio” e eu não tenho fotos minhas daquela época (elas existem, mas eu teria que pedir pra alguém e isso daria trabalho e eu gosto de evitar a fadiga).
estamos em 2025 e, como você pode imaginar, eu me arrependo profundamente de ter sido esse idiota anos atrás. eu já devo ter me esquecido de tanta coisa. a parte mais cruel do esquecimento é não ter nem como mensurar o prejuízo, porque você… se esqueceu. mas sei que foram anos e anos, milhares de dias que, olhando pra trás, passaram num estalo. e eu quase não tenho fotos pra lembrar.
quando você mora longe de sua terra natal e volta pra lá duas vezes por ano no máximo, você quer fazer de tudo para que os curtos tempos na terrinha sejam inesquecíveis, porque as lembranças de lá parecem ser mais doces. você quer sair com seus amigos todos os dias. você quer revisitar os velhos lugares, e quer conhecer os novos também. você quer ver a sua família. você quer eternizar tudo aquilo. você quer tirar fotos.
saber que essa estadia não vai durar muito confere um caráter de urgência a querer aproveitar e registrar tudo, beirando até o desespero em certos momentos. pensar nisso me deixa num primeiro momento meio triste, e depois reflexivo sobre como a relação com a minha terra natal mudou nesses últimos anos. eu sempre amei ser de onde eu sou, mas quando a gente tá longe o amor se mistura com a saudade. ao deixar de ser local para se tornar migrante, o indivíduo obtém uma nova perspectiva, amplia sua visão de mundo e, claro, ressignifica pensamentos e sentimentos acerca de tudo o que viveu em seu lar.
Debí Tirar Más Fotos é um álbum pensado e feito por alguém que ganhou o mundo e que, ainda assim, ama sua terra natal como nenhuma outra. neste que é o seu sexto álbum de estúdio, Bad Bunny se declara para Porto Rico, ilha onde nasceu e viveu boa parte de sua vida.
o sucesso meteórico afastou o artista de língua espanhola mais ouvido no mundo e a pequena ilha caribenha. com agenda cheia, show nos mais diversos cantos do mundo e tudo aquilo que gente muito famosa vivencia, Bad Bunny agora passa a maior parte do tempo dividido entre los angeles e nova iorque. entretanto, quem ouve as músicas de seu novo álbum sabe que a distância é puramente geográfica. o coração e a voz de Benito nunca foram tão porto-riquenhos.
com o reggaeton e o dembow, a salsa, percussões, feats locais e letras com mensagens nem um pouco implícitas (como a da música “Lo Que Le Pasó A Hawaii”), o artista mostra que sua ilha e seu povo continuam respirando a sua própria cultura, resistindo à cada vez mais insistente tentativa de americanização.
e além de falar do presente, há também um resgate do passado, afinal, como falar sobre sua terra sem falar das memórias e dos bons momentos que você viveu nela?



e foi com esse tema que o álbum mais cativou o público geral. a música-título viralizou nas redes (até aqui!!! bad bunny finalmente viralizou no brasil!!!) e se tornou a trilha sonora de uma trend na qual os internautas compartilham fotos de pessoas, animais, coisas ou momentos que, agora, fazem parte de suas lembranças. os versos “Debí tirar más fotos de cuando te tuve // Debí darte más besos y abrazos las veces que pude” são os escolhidos para acompanhar as memórias afetivas. é fácil entender o porquê da trend ter colado. todo mundo tem uma boa lembrança pra compartilhar.
como um fã de longa data de Bad Bunny e alguém que vive no passado mais do que deveria, eu amei esse álbum — e a música-título em especial. poder ouvir ele enquanto passo as férias na minha terrinha é quase como um presente. é um convite pra encher a cabeça de minhoquinha e ficar refletindo horas e horas.
eu devia ter tirado mais fotos. não é como se eu pudesse voltar pra consertar tudo ou fazer as coisas de um jeito diferente, chorar pelo leite derramado não adianta. mas saber que eu tenho consciência disso agora me conforta um pouco quanto ao futuro. acho que lá na frente eu vou estar cheio de fotos dos momentos de agora. e muito provavelmente eu vou reclamar dizendo que eu devia ter tirado mais fotos, só que, dessa vez, dando risada.
obrigado por me incentivar a passar por cima das inseguranças com minha aparência e registrar mais os momentos primo te amo
rasgar elogios pra esse texto não é o bastante pra o quanto ele verdadeiramente me comoveu, amigo! preservar a memória é importante, e ainda mais nos tempos em que vivemos, é poderoso. que venham muitas fotos! também te amo, matto <3